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Por que a equação de Newton é de segunda ordem?

quinta-feira, 3 set 2009; \36\America/New_York\America/New_York\k 36 Deixe um comentário Go to comments

Edição 04/09: pequenas correções no texto para ficar mais claro e preciso.

Uma pergunta teórica interessante sobre sistemas físicos é entender porque a lei de Newton é uma equação para a aceleração de um móvel e não para, digamos, a taxa de variação da aceleração. É claro, uma resposta é que é um fato empírico: o modelo matemático em que determinamos a aceleração através da equação de Newton sabendo apenas a posição e velocidade é consistente com tudo que se observa na Terra e astronomicamente. Todavia, será que há alguma razão física mais profunda para a lei de Newton ser a determinação da aceleração? Ou dito de outra forma, se permitimos a segunda lei de Newton depender de taxas de variações de aceleração, ou quem sabe ainda da taxa da taxa de variação da aceleração, etc., será que algum princípio físico que prescinde a lei de Newton, como a causalidade, seria violado?

Hoje em dia sabe-se que é possível ver a lei de Newton como conseqüência do fato de que há uma certa função da posição e da velocidade, L(\mathbf{x},\mathbf{v}), cuja área total do gráfico em função do tempo t é tal que a lei de Newton é satisfeita quando essa área é a menor possível, dada a posição inicial e final do móvel — i.e. o que se chama o princípio de mímina ação. Se incluirmos nessa função L também a aceleração, podemos obter uma lei de movimento que determina a variação da aceleração em função da posição, velocidade, aceleração e do tempo. É possível desenvolver uma mecânica análoga a de Newton dessa forma. Aparentemente, foi o matemático russo Mikhail V. Ostrogradsky em 1850 o primeiro a considerar esse tipo de sistema físico. Ele percebeu que assim que alguém permite a entrada da aceleração como variável e não determinada em função da posição e velocidade, a energia do sistema pode ser tão negativa quanto se queira. Por exemplo, uma massa presa em uma mola de constante de Hooke k é descrita pela função L dada por

L = \frac{1}{2}mv^2 - \frac{1}{2}kx^2

Podemos considerar como um exemplo de modificação da lei de Newton o sistema

L = \frac{1}{2}mv^2 - \frac{1}{2}kx^2 - \frac{1}{2}\epsilon^2 a^2

onde a é a aceleração, e poderíamos pensar que como a segunda lei de Newton funciona muito bem, o termo de aceleração em L é “pequeno” de alguma forma. Mas isso não dá certo, porque a energia desse sistema será dada por

E = p_x v - \frac{1}{2} (p_v/\epsilon)^2 -\frac{m}{2}(1+\omega^2)v^2 + \frac{m}{2}\omega x^2

onde p_v e p_x são os momenta associados a posição e velocidade. O momento da variável posição não é proporcional a velocidade nesse caso. Como você pode ver, tomar o limite de \epsilon \rightarrow 0 não é a mesma coisa que obter de volta a forma da lei de Newton onde \epsilon = 0 (Não dividirás por zero! Também é possível ver isso na solução x(t) que depende de \epsilon através de \cos(t/\epsilon)). Nós não podemos enxergar aquela aceleração como uma pequena correção a lei de Newton: ao permitir que ela entre na nossa lei de mecânica como uma variável, estamos mudando radicalmente as leis da Natureza. Em especial, essa energia E pode ser tão negativa quanto se queira, já que p_v^2 é positivo e pode ser qualquer valor (eu posso dar um chute inicial tão grande quanto eu quiser para a massa). Para esse caso de um oscilador harmônico isso pode parecer um fato inofensivo, porém se transferirmos essa conseqüência para um sistema físico como a órbita de um planeta ao redor de uma estrela onde a energia pode ser tomada como negativa, a inexistência de um mínimo para energia significa que o móvel vai continuamente perder energia potencial para ganhar energia cinética, ou em outras palavras, entrará em moto perpétuo (extraindo indefinidamente energia potencial) ou eventualmente colapsará no centro de força (o planeta cai na estrela).

Outra forma de ver o que está acontecendo, é saber que a 2a lei da Termodinâmica pode ser enunciada da seguinte forma: dados os vínculos que um sistema físico tem que satisfazer, como o número de partículas, volume e entropia dados, o sistema repousará no estado em que a energia interna é mínima como função dessas variáveis vinculadas. Sendo assim, a existência de um mínimo para a energia dos constituintes da matéria é uma exigência da Termodinâmica. Podemos dizer que a segunda lei de Newton é uma lei para a aceleração porque se fosse de outra forma, ela seria inconsistente com a segunda lei da Termodinâmica (aplicada aos constituintes da matéria)! (Atenção! Estou me arriscando aqui, pois não vi esse tipo de afirmação na literatura. Mas eu acho que está certo, embora possa estar sendo precipitado…)

A ausência de um limite inferior para a energia também trás outros problemas ligados a causalidade quando passamos a considerar a própria lei da força, por exemplo, quando incluímos as leis de Maxwell na brincadeira (em outras palavras, passamos a aplicar o mesmo raciocínio da função L da mecânica para a função L que determina as leis do eletromagnetismo ou da gravidade). Nesse caso, a existência de um mínimo é o que garante que a aceleração de um móvel no instante t só depende de sinais emitidos em instantes anteriores (ou de sinais posteriores, mas essa segunda solução das equações é fisicamente inaceitável). Sem esse mínimo, você pode ter um movimento que depende do passado e do futuro. Dirac encontrou esse tipo de problema ao tentar calcular a reação da força eletromagnética que um elétron produz em si mesmo — quer dizer, a força que o campo elétrico do próprio elétron realiza sobre ele — porque essa depende de volta da aceleração do elétron.

Entrando agora em uma linguagem um pouco mais técnica, o que ocorre é que ao adicionar a aceleração como variável, estamos incrementando o número de graus de liberdade. Na segunda lei de Newton, para cada partícula em 3 dimensões espaciais há 6 graus de liberdade: as coordenadas espaciais e as três componentes da velocidade. A aceleração é determinada imediatamente se você tem essas 6 variáveis através da segunda lei de Newton. Se agora a aceleração também pode variar, o número de graus de liberdade sobe para 9, e é a taxa de variação da aceleração que é determinada por alguma lei de força em função das demais. Essa observação também nos permite voltar a essas teorias com acelerações e poder desenvolver uma técnica que dá sentido físico a elas!

Usando aceleração como um parâmetro pequeno

Para poder usar a aceleração como um parâmetro pequeno na lei de força, é necessário evitar introduzir um novo grau de liberdade. A forma de fazer isso só foi descoberta em 1986 (vide ref. abaixo). Vamos chamar o L normal de Newton (que só depende da posição e velocidade) de L^{(0)} e o pequeno termo de aceleração que deseja-se adicionar de L^{(1)}. Para não introduzir um novo grau de liberdade, deve-se resolver a aceleração em função de posição e velocidde usando L^{(0)} e então inserir essa solução em L^{(1)}. Pode-se continuar esse procedimento a qualquer ordem agora, i.e. posso introduzir a taxa de variação da aceleração na teoria usando uma certa L^{(2)} usando a solução dessa taxa obtida de L^{(0)} + L^{(1)}, e assim por diante. Dessa forma, é possível construir uma lei de força que ainda mantém a estrutura da lei de Newton F = ma, porém a própria força contém a aceleração e talvez até outros termos. Esse procedimento livra a teoria de todas aquelas insanidades de instabilidade de energia, impossibilidade de tomar o limite \epsilon \rightarrow 0, e violação de causalidade (no caso das teorias de campo).

No exemplo da massa presa a mola, o que deve ser feito é substituir a no termo \epsilon a^2 com a solução do movimento massa-mola a = - (k/m)x:

L = \frac{1}{2}mv^2 - \frac{1}{2}kx^2 - \frac{1}{2}\epsilon^2 (k/m)^2 x^2

Como se pode ver, o efeito de adicionar a aceleração é agora corrigir o valor da constante da mola de k para (1+ k \epsilon^2 / m^2) k . A solução continua sendo o movimento oscilatório massa-mola, e podemos colocar \epsilon = 0 para obter a lei de força de Hooke.

Esse procedimento não é ad hoc. Na verdade, ele é a forma correta de realizar essa conta se você quer construir uma teoria que aproxima de volta a teoria de Newton, como vimos, devido ao fato de que só assim você pode tomar o limite de remover a aceleração e obter a teoria de Newton. É também a forma de preservar a existência de valor mínimo da energia.

Também é possível mostrar o seguinte. Vamos supor que você tem uma teoria para L que não tem nenhum problema de mínimo de energia ou causalidade e que pode ser resolvida exatamente em certas condições, mas que ao fazer uma certa aproximação nessa teoria você obtém uma série de potências na aceleração e suas taxas de variação. Um exemplo concreto de teoria assim é uma conhecida como a teoria de Feynman-Wheeler (vide ref abaixo para os detalhes se quiser). É possível mostrar que ao considerar a teoria aproximada, a solução só reproduz de volta a solução exata (na mesma ordem de aproximação) se você aplicar essa técnica de remover graus de liberdade espúrios.

Agora, um comentário técnico. Eu sei que esse assunto dos problemas de teorias com derivadas mais altas que a primeira no tempo não é amplamente conhecido porque há por ai na literatura coisas interessantes como o tal modelo Lee-Wick, que é um exemplo desse tipo de teoria mas onde o Wise et al. não removem os graus de liberdade espúrios. Pelo contrário, eles mantém esses graus de liberdade lá o tempo inteiro, só que esses são associados a partículas “confinadas” (que só aparecem em loops) e por isso não seriam, em princípio, observáveis. Eu suspeito que isso não resolve o problema, porque nesse caso você viola as regras canônicas de comutação do campo observável já que por consistência você tem que ter [ \phi, \dot{\phi}] = 0.

Citation Needed
Para quem sabe o que é uma Lagrangeana, tudo que falei acima foi muito superficial. Então toma: Jonathan Z. Simon, Phys. Rev. D41, 3720 – 3733 (1990) online.

  1. sexta-feira, 4 set 2009; \36\America/New_York\America/New_York\k 36 às 09:25:40 EDT

    Essa é uma pergunta muito feita e pouco respondida, ótimo post.

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